O Faleiro era uma Quinta Rica

O CRUEL E RICO AMO DO FALEIRO

– Noutros tempos, no Faleiro, houve um homem muito rico. Tinha muitas terras, muito dinheiro e criados. Mas resolveu abalar…
São histórias de Dª Nazaré Maria Martins, nascida em julho de 1920, no Faleiro, um pequeno lugar a cerca de 2,5 quilómetros da Bismula (Sabugal), a caminho do Escabralhado (Aldeia da Ribeira).
– Abalar, porquê? – interrogo.
– Ninguém sabe. E o pior é que antes de abalar, ia matando a sua mulher. Bateu-lhe, bateu-lhe muito… Meteu o dinheiro numa talha, enterrou-a debaixo de uma lancha em casa e abalou.
Num misto de lenda e de real, de ficção e de imaginário popular, Dª Nazaré Martins, casada com Albano da Silva (Aguiar da Beira), desvenda essas histórias tantas vezes ouvidas à lareira da boca de seus pais Manuel Joaquim Martins (Bismula) e Amélia Martins (Faleiro).

faleiro_02-jose-barradas-fotoE o homem partiu. A sua mente, porém, estava continuamente sobressaltada pela sorte da mulher e o duro peso da justiça. Viva? Morta? Sempre atormentado, decidiu regressar. Rondou o Faleiro. Com pés de lã aproximou-se de sua casa, subiu ao telhado, retirou de leve uma telha e espreitava já para a penumbra interior. A criada, pressentindo-o rondar e subir, dizia baixinho, com muito desvelo, para a patroa:
– Faça-se morta, senão ele vem bater-lhe outra vez e dá cabo de si.
E entretanto, também a criada fingia e chorava, banhada em lágrimas:
– Ai! Ela já morreu!… Nossa Senhora me valha!…
O cruel marido desceu do telhado de sua casa e decidido a partir para longe e nunca mais voltar, berrou para o criado:
– Agarra nesse chibo grande e vamos embora daqui. Tu montas num e eu noutro.
“Com certeza que esses chibos grandes eram os cavalos que ele tinha” – acrescenta Dª Nazaré Martins ao recordar, numa tarde de agosto de 1997, a velha história, junto de sua casa, na Bismula.
E a correr, acompanhado pelo seu criado, o amo partiu, olhos na distância, a fim de esquecer a sua sorte e o seu crime.
A umas léguas do Faleiro, para lá do Sabugal, à vista de outras paisagens e do rancor do seu amo, moído pelas saudades da patroa, sem dúvida rodeada de dores e de lágrimas, o criado, numa súplica repentina e dolorosa, decide o destino da sua vida:
– Meu amo, tenho de voltar atrás. Vá andando que eu venho já.
E nunca mais voltou. Regressado ao seu cantinho do Faleiro, ficou até ao fim da vida a viver com a patroa e a criada. O patrão é que nunca mais ninguém o viu. Pensando ter matado a sua mulher, minado por pensamentos de remorsos e da ameaça constante da justiça, percorreu caminhos e distâncias, acumulando desalentos e negruras desesperadas de remotas crueldades.

faleiro_jose-barradas-fotoO FALEIRO ERA UMA QUINTA RICA

O dinheiro que esse amo cruel e rico amontoara ao longo dos anos jazia numa talha debaixo de uma laje, no andar térreo da casa.
– Depois da morte desse amo e da sua infeliz esposa – continua Dª Nazaré Martins as histórias do Faleiro , sua terra natal – os ciganos foram encontrá-lo e levaram-no. A casa estava sem ninguém. Só tinha a porta. Eram uns ciganos que vinham de muito longe, para lá do Sabugal.
– Nesse tempo ainda vivia muita gente no Faleiro? – pergunto.
– Estava lá minha mãe e nós. Nós éramos crianças. Os ciganos iam por lá muito passar um dia ou dois. Dessa vez chegaram à noite com os cavalos.. Nós pensámos que iam lá dormir. Mas no outro dia de manhã íamos para o quintal e vimos a porta da casa arrombada, dentro tudo mexido e as lajes levantadas. Tinham tirado a talha do buraco, partiram-na e os cacos ficaram espalhados junto da porta.
– E como souberam eles que havia lá dinheiro enterrado?
– Sonharam com ele, foram lá e de noite levantaram a lancha.
E como um livro aberto, Dª Nazaré Martins revela as memórias do Faleiro de outros tempos, tantas vezes ouvidas a seus pais.
– Quando eu era pequena já vivia pouca gente no Faleiro: só os meus pais e avós. Mas antigamente, o Faleiro era uma quinta rica. Havia lá nove juntas de vacas e nove piaras de gado. Tinha muita gente e até se ordenou lá um padre.
E Dª Nazaré parou um instante, envolvida no antigo esplendor do Faleiro. Mas logo a memória de tempos tumultuosos e incertos a assaltou:
– Quando foi das invasões francesas os soldados roubavam tudo: dinheiro, roupas, animais… Violavam as raparigas e furavam os tonéis. As pessoas que podiam, fugiam para o mato, levando dinheiro e roupas. Tudo o que os franceses roubaram, carregaram-no num cavalo do Faleiro mas ele abalou e foi para as tapadas da Cornelhada meter-se nas moitas. Depois foi ter a casa com tudo o que tinham posto.

faleiro_03-jose-barradasEntre roubos, crueldades e sustos, os soldados franceses, arrombando as portas, entravam de repente nas casas. Numa delas, dois soldados, de armas em punho, exigiam de duas raparigas assustadas, junto da lareira:
– Queremos dinheiro.
E uma delas, adquirindo uma repentina calma miraculosa:
– Nós não o temos. Mas abri essa arca que lá no fundo há dinheiro.
Junto da parede, avultava uma enorme arca, de centeio. Eles abriram-na e saltaram para dentro. E logo as duas raparigas fecharam de repente a tampa, sentaram-se em cima, fazendo peso e força. Na aflição, encerrados lá dentro, os dois soldados já não queriam dinheiro mas apenas sair e continuar a viver.
O Faleiro de outros tempos, com suas histórias e lendas de riquezas e sustos, crueldades e heroísmos, rebanhos e vida agitada, diluiu-se, no tempo. Hoje apenas memórias e fantasmas habitam o Faleiro. A sua gente partiu toda para outras paragens, na procura de uma vida mais folgada e aberta. Nas casas trancadas e nos currais vagueiam livremente lendas encantadas de tesouros e crueldades. Nas cortes escancaradas, de paredes a ruir, pelas ruas desertas, por escadas e varandas, ervas e silvas convivem e crescem numa fraterna proliferação de monte silvestre.
Como nas ruínas de antigas citânias dos lusitanos ou de cidades romanas, apetece caminhar por aquelas escassas ruas sem vivalma, contemplar casas desabitadas e pedras caídas, imaginando e sentindo o palpitar agitado da vida antiga do Faleiro, cheio de rebanhos e de gente. Aquele ambiente de “cidade” desolada e adormecida é hoje apenas perturbado pelas rápidas visitas de Dª Nazaré e Sr. Albano da Silva para o amanho das terra, pelas breves passagens estivais de seus filhos ou veraneantes, por transeuntes apressados ou caçadores embebidos em digressões venatórias. O Faleiro de outros tempos, “uma quinta rica”, de vida ruidosa e densa, hoje, no cantar do Dr. Manuel Leal Freire (in: Sementes na Rocha Nua, Ed. Pax, Braga, página 185) – ilustre jurista e homem de letras, meu parente e grande amigo – tornou-se em:
Pedras negras, negrumes de granito
Aos montões esparzidos sobre o húmus…
Aqui parou o tempo, não há rumos,
Só os do vento, tropear maldito.

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Texto: Manuel Leal Fernandes

 

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Fotografias: José Barradas

 

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